sábado, 6 de abril de 2013

Os moedeiros falsos



GIDE, Andre. Os Moedeiros falsos. 1925.



O primeiro livro que li do Andre Gide, Os subterrâneos do Vaticano, não me causou impressão particular, tanto que lembro pouco dele. Os moedeiros falsos é algo mais interessante.


O centro moral da obra se encontra no personagem Edouard, que se relaciona de alguma forma com os vários personagens do livro e sua sub-tramas; em posição  a ele temos o Conde de Passavant, figura do aristocrata corrupto e falso, tanto em suas relações quanto em sua arte.

Pode-se dizer que esse é um livro sobre moralidade, e como a imoralidade, sub-repticiamente, pode-se apoderar das pessoas, presas de suas fraquezas e susceptibilidades; aqui se tem a idéia de que, como uma forma de se erguer na sociedade, se sucumbe a falsidade das relações sociais e se deixa de lado a liberdade individual de cada pessoa. Esse desejo também está ligado a idéia de isolamento e essa fraqueza é condicionada pelo sentimento de solidão e de, de alguma forma, integrar-se à sociedade.

O tema da liberdade individual também é abordado,  e como se entregar a ela, como propõe Passavant e seus asseclas, no fundo é uma forma de submissão a uma autoridade e um conjunto de regras tão falso quanto o de um pastor preso à repressão de suas idéias religiosas, com suas consequências negativas. A solução aqui é pensar por si mesmo e escolher o caminho a se tomar, e não seguir um dogma pré-determinado. Há vários personagens e idéias no livro, entre elas a que há uma certa inveja e desejo do ser corrupto quando este é confrontado com a virtude.  Outra são casais separados por um doloroso muro de incomunicabilidade, que corroem suas vidas.


O título do livro se refere à novela que Edouard, a figura central do livro, está escrevendo, e a uma das subtramas do livro, que envolve um grupo de estudantes e as moedas falsas do título;  mas também se relaciona a falsidade das relações sociais à que aludi acima. Em um certo momento Edouard se refere que, seria interessante que em vez do livro, se publique um livro com o processo de construção desse, e "Os Moedeiros Falsos" pode ser lido dessa forma, como o processo de construção da obra de Edouard. 

Outra coisa a ser notada é que nas entrelinhas há todo o tipo de afeto homoerótico e sexo gay acontecendo. 

                                                                       André Gide (1869-1951)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

O Homem sem Qualidades



MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. [Der Mann Ohne Eigenschaften] Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth. 1930-1942.
Robert Musil (1880-1942)



Escrito por Robert Musil e publicado entre 1930 e 1942, o Homem sem qualidades se passa no Império Austro-Húngaro, chamado aqui de “Kakânia” às vésperas da 1ª Guerra Mundial; nosso anti-herói, um matemático, resolve passar um ano de absoluta imobilidade e afastamento, puramente reflexivo. A parte publicada desse livro transcorre neste ano e se concentra em encontros do protagonista com um catálogo de figuras representativas do mundo de idéias da época: Assim, somos apresentados a histérica, a ninfomaníaca, o artista burguês, a diletante, o funcionário público, o representante militar, o ricaço filósofo, o membro da aristocracia governante, o nacionalista, etc todos mais ou menos envolvidos em uma congregação auto-denominado de “Ação paralela”, um movimento com o objetivo de encontrar alguma ação com o intuito de comemorar o aniversário do Imperador Francisco José em algum tipo de ato prático, não bem especificado. De fato, boa parte do livro se trata das reuniões de salão em que se tenta, desesperadamente, encontrar um objetivo ou razão de ser para a tal ação no turbilhão de idéias em que os personagens estão inseridos; a primeira guerra mundial é de certa forma o pano de fundo e a consequência óbvia do desenvolvimento do livro, que com um humor mordaz e uma fúria analítica comparável somente à de Proust, faz inventário de uma era em que o desencanto com o mundo das idéias é expresso pelo esgotamento tanto das idéias da modernidade quanto do romanticismo, sentimentalismo ou do conservadorismo da época. 

A descrição usual que se dá ao livro, de não ter notavelmente muita trama, certamente é verdadeira; porém o primeiro volume é impecavelmente composto, com um clímax que lembra os confrontos de ideologias de Dostoiévski, quando Ulrich, o protagonista é confrontado com praticamente com todas as correntes ideológicas expostas no livro de forma sucessiva. O segundo volume, não terminado, é talvez mais centrado em um fio narrativo mais constante (no caso, o desenvolvimento do “incesto espiritual” de Ulrich com sua irmã recém-encontrada Agata), com algumas digressões sobre o desenvolvimento da ação paralela. 

Mas o que separa esse livro de tantos outros a comentar o período, é certamente sua prosa altamente complexa, repleta de digressões, reflexões e análises sobre o estado de espírito da época; a narrativa parece disposta a analisar obsessivamente cada expressão espiritual de forma a dividi-la em seus mais ínfimos componentes, derivando daí uma reflexão altamente abstrata e às vezes impenetrável, mas não desprovida de sarcasmo e bom humor; não por acaso, a edição brasileira em que li o livro, termina subitamente durante a leitura do diário do protagonista, que tenta analisar e hierarquizar sentimentos, sensações e a relação de sua existência a priori ou determinada pelo indivíduo ( e tem gente que reclama das pregações do Padre Zózima em Os irmãos Karamazóvi!); esse é o tipo de livro em que até mesmo os adultérios elegantes de madames estão relacionados a considerações sobre sua posição em relação ao tipo de idealismo que elas pretendem exibir na sociedade. 

A título de exemplo vai aqui um trecho em que Musil comenta sobre a situação da monarquia dual à época:

“Hoje em dia agimos como se o nacionalismo fosse invenção dos fornecedores dos
exércitos, mas deveríamos tentar uma explicação mais ampla, e a Kakânia fornecia uma
importante comprovação para tal. Os habitantes dessa dupla imperial-real monarquia
imperial e real enfrentavam uma pesada tarefa; deviam sentir-se patriotas imperiais e reais
austro-húngaros, mas ao mesmo tempo do reino húngaro ou do real império austríaco.
Seu lema predileto face a essas dificuldades era: “forças unidas!” Chamava-se a isso
viribus unitis. Os austríacos porém precisavam de mais forças para isso do que os
húngaros. Pois os húngaros eram antes e depois de tudo apenas
húngaros, e só secundariamente outras pessoas que não entendiam sua língua os
consideravam austro-húngaros; os austríacos, ao contrário, antes de tudo, originariamente,
não eram nada, e segundo seus dirigentes deveriam sentir-se indiferentemente austrohúngaros
ou austríacos-húngaros — nem ao menos havia uma expressão adequada para
isso. Tampouco havia a Áustria. As duas partes, Hungria e Austria, combinavam entre si
como um casaco vermelho-branco-verde com uma calça preta-e-amarela; o casaco era
uma peça isolada, a calça era o resto de um terno preto-e-amarelo que já não existia mais,
pois fora separado em mil oitocentos e sessenta e sete. A calça “Áustria” chamava-se
desde então, na linguagem oficial, “reinos e países representados no Conselho do Reino”.
O que naturalmente não significava coisa alguma, e era um nome feito de nomes, pois
também esses reinos, por exemplo os reinos tão shakespeareanos da Lodoméria e da
Ilíria, há muito não existiam mais, e já nem existiam quando ainda havia um terno pretoe-
amarelo completo. Por isso, se perguntavam a um austríaco o que ele era, naturalmente o homem não podia responder: sou de um dos reinos e países inexistentes representados
no Conselho do Reino. Assim, preferia dizer: sou polonês, tcheco, italiano, friulano,
rético, esloveno, croata, sérvio, eslovaco, ruteno ou valaco, e era isso que chamavam
nacionalismo. Imagine-se um porquinho-da-índia, que não sabe se é porco ou roedor,
portanto um ser que não tem nenhum conceito sobre si mesmo, e entender-se-á que
eventualmente ele possa sentir um medo enorme até do próprio rabinho; mas era nessa
relação que se encontravam os kakanianos uns com os outros, e encaravam-se com o
pânico horror de membros que, unindo as forças, impediam uns aos outros de serem
qualquer coisa. Desde que existe a Terra não houve uma criatura que tivesse morrido de
um lapso de linguagem, mas deve-se acrescentar que, mesmo assim, a dupla monarquia
austro-húngara e austríaca e húngara acabou arruinada por ser impronunciável."

 Homem sem Qualidades é mais um livro de um subgênero comum nos séculos XIX e XX: Do tipo que não faz porra nenhuma. Dessa forma, Ulrich entra na galeria dos personagens que incluem Oblomov, Bentinho, Brás Cubas, o narrador de Proust, etc.